De Kiwilimón para você

A comida pode curar você

Por Shadia Asencio - 2020-12-28T12:55:17Z
Os retiros de silêncio são uma experiência curiosa. Na hora da refeição, não há espaço para os “que sopa deliciosa”, os “você me passa o sal” ou os “ai, esse molho está muito apimentado”. Embora pareça uma obviedade, não há outra escolha senão prestar atenção ao alimento. Lembro que da primeira vez tinha à minha frente uma sopa de espinafre com pedaços de batata e uma diminuta brunoise de cenouras. As instruções da minha guia de meditação eram claras, era preciso observar tudo: a forma de cada vegetal, a caprichosa distribuição em que os ingredientes se acomodavam no prato. Os aromas não eram poupados. Era necessário concentrar-se nas notas do espinafre cozido, o aroma do tempo. E, claro, já na boca, sentir cada ingrediente, cada combinação alcançada ao saborear uma colherada. A experiência foi iniciática. Há alguns dias, pude repetir a emoção. Desta vez foi em um centro de medicina ancestral onde era preciso comer com consciência. Ana, a chef, já faz anos que confecciona combinações de receitas que depois prepara de forma consciente e serve para o prazer dos visitantes. Eva Solís, a Avó, é a fundadora deste espaço e a criadora do livro ‘Comida que cura’. E é que já diz uma citação bíblica em Provérbios: “as palavras amáveis são como o mel: doces para a alma, saudáveis para o corpo”. Para a Avó, as plantas, as frutas e tudo que procede do reino vegetal têm o poder de reagir frente às energias que lhes colocamos através da intenção.Talvez pareça a formulação de um passe mágico –é mais, provavelmente o seja– mas há uma arte em transformar os ingredientes mais simples em iguarias para a alma. Explicado de outra forma, o ritual é similar ao que fazemos quando cantamos ou falamos bonito para uma planta: ela cresce mais e cresce melhor. A Avó explica que as palavras e a intenção transformam um prato em uma medicina poderosa. Molho para estimular a felicidade? Sopa de ervilha para alcançar a tranquilidade? Assim, exatamente.A oração começa ao cozinhar: agradecemos a cada integrante da receita, assim como às pessoas que tiveram a ver com eles –agricultores, distribuidores, vendedores– desde o campo até o momento de cozinhá-los. No final, “a importância de oferecer uma comida que cura é que podemos elevar a vibração energética e o estado de ânimo de nossas famílias”. Isso sim. É preciso ser sábio diante do nosso marchante de confiança. “A seleção dos ingredientes em um prato que leva a intenção de curar começa com a compra de alimentos vivos e produtos não processados como matérias-primas”. Depois, é importante conseguir as combinações corretas. Aqui não se aplica isso de que tudo cabe em um potinho sabendo organizar. Para a Avó –como também dita a tradição Ayurvédica– é preciso aprender sobre a química que se desperta nos alimentos ao uni-los. “Combinar os alimentos de maneira adequada permite uma melhor digestão, uma evacuação adequada e uma desintoxicação contínua. O contrário produz doença”, afirma a Avó em seu livro.Laura Esquivel em ‘Como água para chocolate’ faz uso de hipérboles para explicar como os sentimentos da cozinheira –da entrañável Tita– se transferem para o prato e para os comensais: desde codornas com pétalas de rosa até uma rosca de reis. Para a Avó, não é uma exageração: “Quem cozinha deve ter consciência de como está no momento de estar frente ao fogão. Se estou triste, brava ou com pressa, isso mesmo darei para minha família”. Para ela, a vibração que temos confere ao prato uma emoção, então é melhor estar conscientes ao cozinhar. Depois vem a degustação consciente. A Avó recomenda estar em silêncio e com os olhos vendados. Retomar o uso das mãos para entrar em contato direto com os ingredientes; perceber suas texturas, formas, tamanhos e temperaturas. Assim, em total atenção, investigar com o nariz e a boca os insumos que temos à nossa frente. Provar, desfrutar, parar nesse doce momento. O exercício meditativo terá uma vantagem adicional: “Ao degustar conscientemente, a ordem de saciedade chega mais rápido ao cérebro e, portanto, precisaremos comer menos. O contrário acontece quando comemos lendo, conversando ou pensando no que tenho que fazer”. Por fim, para que sua comida se torne um meio de curá-lo, purificá-lo e renová-lo, a Avó recomenda abençoar e agradecer por isso que terminou em um prato precisamente para você. Essas ações que parecem insignificantes “são os pilares que sustentam a abundância, o fluxo equilibrado entre dar e receber”. Comer assim, em total conexão, nutrirá mais do que apenas seu corpo físico.