De Kiwilimón para você

A fascinante cozinha peruana

Por Shadia Asencio - 2020-10-23T10:19:32Z
Em Peru eu me apaixonei duas vezes. A primeira foi pelas montanhas, no caminho de seis meses que tracei de Cusco a Chiclayo. A segunda, mais recente, em uma visita de dez dias a Lima e Nazca. O motivo era quase contrário: nesta ocasião eu queria devorar a capital a mordidas. Ao mesmo tempo, sentia falta do sotaque, dos huaynos, da cerveja Cusqueña, dos chifles da rua; enfim, sentia falta do meu Peru. Passadas as primeiras vinte e quatro horas da minha chegada não havia dúvida: a cozinha peruana me reconquistou. Naquela época, sua gastronomia já havia explodido como uma bomba diante da crítica mundial: por todos os lados era reconhecida como uma das mais complexas e, claro, como uma das melhores. Depois de percorrer praticamente todo o país entre minha primeira e segunda visita, o que mais anseio da cozinha peruana são os sabores da fumaça da serrania. A pachamanca (manjar de carnes e verduras cozidas sob a terra) me lembra os Andes quando seus picos inatingíveis eram o abrigo das minhas noites. Relaciono isso com a lembrança das edificações monumentais incas, com sua energia mística e avassaladora. Ali, a mais de 2400 m de altura, a cultura podia ser desfrutada em um prato denso onde não faltavam a batata, o ají, o huacatay. Nunca comi um abacate (palta) tão grande ou um abacaxi tão doce quanto os que provei lá nas alturas.Mas as regiões no Peru dividem as descobertas. A geografia acidentada, os assentamentos e as migrações acabaram por agrupar suas preparações: há as marinhas, há as fusões –chifa e nikkei– andinas, crioulas, africanas, amazônicas... Delicioso por onde se olhe. A mais aclamada talvez seja a cozinha marinha: é uma cerimônia rendida ao produto inigualável das correntes frias de Humboldt no Pacífico e quase sempre adicionada com toques orientais. Como em todos os países, o essencial se concentra na capital. É preciso desviar de barracas e pessoas nas calçadas para chegar ao ceviche ou à leche de tigre mais fresca no Mercado nº 1 de Surquillo. Para um bom comilão de cozinha chinesa, se toma o caminho para o centro e chega-se a San Joy Lao –imperdível o arroz chaufa de charqui e chanchito–. Em bairros como Miraflores e San Isidro estão as joias intelectualizadas dos grandes chefs locais como Virgilio Martínez de Central, Pía León de Kjolle ou meu grande favorito, Mitsuharu Tsumura de Maido, que leva ao auge os sabores nikkei (metade peruanos, metade japoneses). Impossível não mencionar Astrid e Gastón de Gastón Acurio, o grande líder da gastronomia peruana pelo mundo; os locais relativamente novos como Osso ou os de sempre como Fiesta.Nunca ficam para trás os guisados das picanterías, os picarones que se conseguem nas lojas quando é temporada, e os anticuchos das esquinas que aparecem quando você está acordado até de madrugada. Seu cheiro de carne temperada feita na brasa chama tanto quanto um anúncio gigante de neons. Nas picanterías convergem os saberes da cozinha popular. Fico nostálgico ao pensar em seus chicharrones, seus chupes (caldos) – e suas patitas de chancho. Nesses pequenos locais geralmente protegidos por uma matriarca se recolhe o gênese da grande gastronomia peruana e as técnicas transmitidas por gerações. As picanterías são de tanto valor que vários distritos as declararam Patrimônio Cultural da Nação. A cozinha peruana não escapa do exótico, do intrincado. Alguma vez vocês já provaram carne de lhama, alpaca ou cuy? Em algumas áreas do Peru são um manjar. E é que a textura da alpaca é inigualável, desfaz-se assim que se enfia o garfo. Para mim, era tudo o que eu pedia –e um ou dois pisco sours– assim que voltava a Cusco toda sexta-feira, depois de uma semana internada nas montanhas. Na conta faltam mil guisados, dezenas de bebidas, sobremesas que fazem suspirar e as preparações de regiões como Chiclayo ou Arequipa. Tentarei falar de tudo em outras cartas editoriais. Talvez com palavras eu possa expressar todo o amor que sinto por esta cultura e sua comida. Enquanto isso, compartilho com todo carinho e respeito, uma receita originária da cidade de Huancayo e um imperdível dos restaurantes de Lima: a papa a la huancaína. A preparação original leva obviamente ají amarillo, embora aqui a fizemos com pimentão amarelo para que as cozinheiras de casa pudessem encontrá-lo facilmente. Posso dizer uma coisa? Ficou deliciosa!