Do que você perde se não comer quelites
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Shadia Asencio - 2021-08-27T12:30:39Z
Minha avó deixou no centro da mesa uma panela de barro alongada. Ao destapá-la, uma grande decepção me atingiu: dentro havia um emaranhado de fios verdes com cheiro de ervas molhadas que se entrelaçavam uns aos outros. Apenas alguns cubos de cebola davam um pouco de jogo visual a esse prato que a mãe da minha mãe se referiu como quelites. “Você vai gostar. Eu coloquei um pouco de alho”, disse, como se essa afirmação convencesse uma menina de dez anos a encarar aquele amontoado verde como um pedaço de bolo. A contragosto –ou para experimentar as tortillas ainda quentinhas das senhoras que trabalhavam com minha avó em seu restaurante– fiz um taco. Chegaram à minha boca notas duras de terra, das “tortitas de pasto” que meu irmão e eu fazíamos quando brincávamos de comidinha no parque e não havia mais ingredientes para os guisados que não fosse lama. Achei justo adicionar ao taco algumas gotas de limão. A experiência melhorou drasticamente. Nos quelites agora brilhava algo que me sabia a sal e que agora me refiro como a mineralidade do solo presente na milpa dos meus avós. Eu gostei. Gostei mais quando, em outro dia, minha avó os preparou com batatas e azeite de oliva. Desde então, até a palavra me lembra dela, aos domingos na sua casa de campo, ao calor da sua cozinha quando lá fora caíam as geadas. Recentemente tive a oportunidade de reconectar com a memória. Confesso que desde que minha avó faleceu não fui a essa casa no campo, nem provei quelite algum. Foi no evento organizado na Arca Tierra que dois cozinheiros apresentaram a outros comensais e a mim várias preparações elaboradas com essas ervas. Lucio Usobiaga, diretor desse projeto onde, além disso, entrega os vegetais que crescem em suas chinampas a restaurantes e particulares, e Rafael Mier, diretor da Fundação Tortilla, nos convidaram a cortar quelites na milpa das chinampas de Arca Tierra em Xochimilco. O evento –segundo capítulo da Milpa Viva na Chinampa– reuniu dois cozinheiros que, além de nos ensinar sobre quelites, nos mostraram que podem ser a pedra angular em um banquete celebratório. Com os quelites trazidos de sua terra natal, Oaxaca, Thalía Barrios, cozinheira da Levadura de olla, preparou uma sopa de guias de abobrinha e quelites e um porco com mole acompanhado de verdolagas temperado com os sabores da lenha. O veracruzano Lesterloon Sánchez preparou pratos como um chile empanado recheado de quelites coberto por um molho de piloncillo de equilíbrio surpreendente.Já entrados na matéria, Rafael Mier nos contou sobre a existência de mais de 350 tipos de quelites que se desenvolvem entre as milpas mexicanas. Por causa da diversidade das cinco zonas geográficas distribuídas no território nacional, os produtos que crescem em cada região mudam, então a regra de que na milpa só há abobrinha, pimenta e feijão não está escrita em pedra.O que são os quelites, quais são seus benefícios e alguns exemplosMais que um ingrediente, los quelites são uma categoria de ervas comestíveis que encontram saída entre os produtos da milpa. “A palavra quelite provém do náhuatl quilitl. Essa palavra fazia referência aos vegetais, assim como nós hoje nos referimos aos legumes, em que na verdade falamos de uma grande quantidade de produtos”, complementa Rafael. Atualmente, encontram-se sob esse campo semântico alimentos como o amaranto que, antes de ser a matéria-prima de uma alegria, é uma planta composta por botões de bolinhas vermelhas. Também estão os esquecidos quintoniles, os deliciosos huauzontles, os pungentes rabanetes, o chipilín que dá tanto sabor aos tamales chiapanecos, a chaya que faz brilhar a gastronomia yucateca, o pápalo que não falta em centenas de taquerias e os reis do Natal e da Quaresma, os romeritos. O sabor de cada um é uma experiência particular; alguns aportam acidez, outros pungência, notas cítricas ou anisadas que complexificam os guisados mexicanos desde épocas pré-colombianas. Prova disso é sua presença no Códice Florentino e séculos depois no Cocinero mexicano de 1831. Mas o poder nutricional dessas pequenas e humildes ervas supera sua grandeza culinária. Essa cor verde característica só pode significar uma coisa: fibra, muita fibra. Além disso, possuem grandes quantidades de vitamina A e C, cálcio, potássio e ferro imprescindível para um sistema imunológico forte. Seus usos medicinais são tão eficazes quanto ancestrais. Por exemplo, a chaya tem sido usada para curar dores nos rins, as verdolagas para aliviar problemas digestivos, a folha santa para dores de cabeça e estômago, o pápalo para limpar o fígado.É necessário devolver os quelites ao discurso das toalhas do dia a dia, às toalhas longas, ao teruño dos locais com toalhas de plástico. Os quelites são história que cresce humildemente no campo mexicano e acrescenta camadas de complexidade aos guisados que requerem tempo. Em cada um há um tremendo aporte nutricional, medicina que cura o corpo e o espírito e cultura viva que mal toca o bolso.