De Kiwilimón para você

Do que você perdeu se não experimentou a gastronomia de Nayarit?

Por Shadia Asencio - 2021-08-23T17:17:16Z
Estive em Nayarit duas vezes. Antes de ir, a ansiedade era por presenciar paisagens de filme, pores do sol que soltam lágrimas, a cor luminosa do mar. Já lá, com o chapéu de exploradora colocado, meu foco mudava: cada vez que um prato com massa, com frutos do mar, com adobo, era colocado sobre a minha mesa, sinais de admiração e de interrogação emanavam deles como fumaça. Esta semana, na viagem de votantes do guia México Gastronômico da Culinária Mexicana, revivi essa sensação. Entre sobremesas, tive a oportunidade de conversar com a chef do El Delfín, Betty Vázquez, para que me ajudasse a colocar adjetivos e vírgulas nas interrogações que a comida do seu estado gera em mim. A primeira vista, Nayarit compartilha pratos com Jalisco, pois ambos foram parte da mesma região – o Sétimo Cantão de Jalisco – até que em 1917 o estado se tornou independente. Mas sua história começa muito antes: há vestígios de caça, pesca e agricultura de 5000 a.C. nessa imensa fonte de ecossistemas e microclimas.  Sua oferta de produtos foi se preenchendo pela Conquista, pelo comércio com o Oriente. A Nao de China – o Galeão de Manila – tocava base no porto de San Blas trazendo especiarias, frutas, arroz, seda e madeira das distantes Filipinas. Direta ou indiretamente, Nayarit teve influência de todos os pontos do planeta: “Trouxeram ingredientes, técnicas culinárias, tradições e formas de comer”, segundo me conta Betty. “A cozinha nayarita então é uma fusão, mas uma fusão com identidade”.Impossível não notar a costa que contorna o estado pelo lado oeste, com esse Pacífico que efetivamente solta lágrimas. Mas ele não é a única fonte de riqueza natural – nem de lágrimas de felicidade –. Segundo o que me conta Betty, Nayarit tem quarenta e quatro ecossistemas dos quais se colhe coco, milho, trigo, feijão, arroz e tabaco de excelente qualidade; a banana e a cana-de-açúcar crescem com graça e facilidade devido ao seu clima predominantemente quente. Há uma grande quantidade de quelites, leite de ótima qualidade e queijos que são produzidos com ele. Mas, um bom produto não é nada sem uma boa preparação. A coisa se torna complexa – rica, pois – quando à panela cultural se somam quatro tradições endêmicas: a cora, a huichol, a tepehuana e a mexicanera, que criaram formas únicas de consumir o produto regional. “Temos vinte municípios, ou seja, há vinte formas diferentes de cozinhar. São vinte municípios que geram uma riqueza extraordinária”, assegura Betty. O desafio que essa grande embaixadora da culinária mexicana enfrenta é gerar um acervo de receitas locais com a ajuda das universidades.A nível geral, a cozinha de fumaça tem um lugar especial na culinária: é com essa técnica e a madeira do mangue que o peixe zarandeado adquire sabores que nos fazem querer roer os ossos do pargo. Também existe a cozinha crua que se dá o luxo da nudez para exibir sua frescura. “A cozinha crua vem do Oriente, dessa mestiçagem com o Ocidente. Foi de lá que chegaram os limões, então pode-se dizer que o ceviche não é peruano nem mexicano, mas uma fusão de técnica asiática com produtos locais”. Falando dos pratos regionais, segundo Betty Vázquez, de San Blas não se deve perder o peixe defumado, o peixe tatemado, as empanadas de camarão, as chimichangas de ostra, o pozole de camarão e o pozole de peixe. Deve-se provar a neve de garrafa de Ixtlán del Río; de Jala, seus milhos endêmicos, as tostadas raspadas e de sobremesa, os roscones. De Santiago está o patê de camarão e da Ilha de Mexcaltitán, o peixe zarandeado à lenha. Para o norte, o prato é o puerquito echado de Acaponeta; a bebida, de cevada.Na zona sul está a deliciosa sopa de boda, preparada com uma base de tortilhas de milho, pão frito e pão tostado que são dispostos alternadamente sobre um refratário. Leva frango, banana, ovo cozido, amêndoas, grão-de-bico. De Tepic, a marisquiza e os coquetéis cura-crudas. De lá também é o ante, uma sobremesa da época colonial que não é como colimote. Este é coberto com passas, gergelim e canela em pó e geralmente é servido em um potinho de barro decorado com papel de china picado.As bebidas não são poucas. Como em Jalisco e em Colima, se produz e consome o tejuino, que refresca, e o tesguino, que trai. A última novidade é que o estado entra na lista de produtores de vinho com nove variedades de uvas. “A mesma empresa que está fazendo esse grande esforço vinícola já está trabalhando com um xamã huichol e cora para resgatar uma bebida ancestral de maguey chamada tuchi”. O café é uma das maravilhas do clima e da proximidade com o Trópico de Câncer. “Temos um café maravilhoso desde Compostela até o município de San Blas, passando pelo município de Tepic, com padrões de qualidade importantíssimos”. De fato, segundo o que me confirma Betty, dessa zona exportava-se um café que nem Obama, ou melhor, até mais que Obama. Daqui era originário o café da Casa Branca durante seu reinado.Quando a confiança e o bolso nos permitirem viajar, Nayarit é um destino para se desmanchar e se comer dobrado em uma tortilha, cru ou assado à lenha. Deve-se experimentar os restaurantes de luxo da zona de Punta Mita ou da Riviera Nayarit; parar em Bucerías ou Tepic para provar pratos típicos; passear, como antes da nova normalidade, para provar as mangas chilosas da esquina, os antojitos elaborados com esse milho que sabe à mineralidade da terra. “É preciso vir ver os luxos da Riviera Nayarit, e quando digo luxos não falo de hotelaria de cinco estrelas ou mais. Falo do luxo das pessoas que são calorosas, e dos luxos da natureza, dos luxos da gastronomia, dos costumes e das tradições”. Luxo é descobrir que o mundo continua sendo bom, com ou sem nós. Melhor com nós.