O que é o feminino na cozinha?
Por
Shadia Asencio - 2021-03-05T11:56:56Z
O feminino é um adjetivo que descreve uma realidade biológica, sociológica e gramatical. Isso sim, o substantivo ao qual o anexamos tem a ver com uma concepção ideológica. Na cozinha, o feminino se generalizou em duas atividades: a informal, que acaba derrubando a entrada de uma casa por necessidade, para se transferir a uma barraca de rua; e a doce, a dos bolos e biscoitos com royal icing, a da estação de sobremesas nos restaurantes com piso encerado. Mas já há mais. As mulheres encheram a cesta do feminino com frutos inesperados.No rewind da vida, a terra e o fogo foram os elementos iniciáticos do feminino. Em nós estava a responsabilidade de resguardar o lar, de acender e manter a fogueira – do latim focus, fogo – nas cavernas originárias. Em cada uma, o braseiro era um monumento à vida, pois afastava animais selvagens e resguardava o calor familiar.A civilização evoluiu, não assim o destino das do nosso gênero. O fogo da brasa se manteve aceso no lar sem o direito de se tornar ofício. Isso sim, na história não faltaram as feiticeiras que prepararam encantamentos culinários, cozinheiras de corte, mulheres que alimentavam soldados, amas de leite e rainhas que colonizaram com receitas os terrenos de seu laço matrimonial. Por supuesto, estavam as freiras, as guardiãs do saber teológico e culinário. Sob o som do ora et labora especializaram-se na criação culinária, na confeitaria, na confecção do chocolate. Ninguém se surpreendeu que os livros de culinária e as revistas culinárias do renascimento e barroco nem por engano tivessem o nome de uma mulher. No século XVIII, momento histórico em que a palavra gastrônomo se tornou moda, a versão gramatical no feminino brilhou por sua ausência. Na nouvelle cuisine do século XX, na cozinha moderna de August Escoffier, a mulher foi confinada à mesa. Nada novo. Capítulos que retrataram, como em outros âmbitos, o machismo como um processo histórico. Vimos-nos fracas para carregar panelas, mau agouro se estávamos em nosso período. E então chegaram mulheres que não pediram desculpas por serem talentosas: Eugénie Brazier – a primeira mulher a obter três estrelas no Guia Vermelho –, Julia Child – a cozinheira que popularizou a culinária francesa nos Estados Unidos por seus livros e programas de televisão –, Alice Waters – a mãe da culinária californiana em seu Chez Panisse nos anos setenta.Graças às que vieram antes e depois, a cozinha atual é um campo de batalha onde o feminino se resignifica a cada dia. Como Gabriela Cámara, que se tornou restauradora com menos de trinta anos e soube brilhar no México e nos Estados Unidos. Como Celia Florián, cozinheira das Quince Letras, que preserva saberes regionais em seu restaurante e é a voz de outras cozinheiras tradicionais em Oaxaca. Como Martha Ortiz Chapa ou Elena Reygadas, que souberam amalgamar o talento artístico com o fine dining. Como Norma Listman de Masala e Maíz que conceitua tanto uma barbacoa temperada quanto um texto incendiário. Como Pía Quintana, Titita ou Margarita Carrillo que picaram pedra, documentaram e replicaram para dignificar o que hoje se come sobre toalhas longas. O feminino então aterrissou nos magueyes pulqueros de Hidalgo, nos de mezcal com Lala Noriega; se expandiu nos campos de agave azul com a tequilera Melly Barajas Cárdenas; foi servido em uma taça de martini na mão de Fátima León ou Mafer Tejada. É o sabor por trás de grandes cervejas com Diana Arcos, química de Wendlant. Tem sido nariz no vinho ao lado de Georgina Estrada, Claudia Juárez e Michelle Carlín e é o espírito dos vinhedos que cuida a enóloga Lourdes Martínez em Bruma. Taqueras, torteras, pescadoras, tamaleras, carniceras, donas de fonditas, embaixadoras de bebidas, empreendedoras de projetos comunitários, criadoras de conceitos restauranteros, produtoras gourmet, agrônomas, garçonetes, garroteras, conservacionistas de cultura comestível, fotógrafas culinárias, cozinheiras medicina, escritoras de experiências sápidas que nos dificultaram a definição do feminino na cozinha e que fizeram com que não houvesse vocação lá fora sem o pulsar de uma mulher.