De Kiwilimón para você

O que gostamos de comer os mexicanos

Por Shadia Asencio - 2020-08-14T09:46:48Z
Diria que a boca é a parte mais caprichosa do corpo. Ela, construção da memória, fala do que lhe tocou provar, daquilo que lhe esculpiu um momento. E a razão da polêmica coluna escrita por Enrique Olvera, o tema de como comemos os mexicanos volta à tona. O mexicano, delimitado com as bênçãos de sua biodiversidade e sua cultura, tem um gosto como o de ninguém. O verde, o branco e o vermelho se cravam em nossas papilas gustativas como bandeira de conquistador. Sem fazer uso de nacionalismos, nosso gosto, como o de qualquer outro cidadão do mundo, é um treinamento adquirido. Os nascidos em uma zona tropical como Bali não terão o mesmo paladar que os nascidos no frio Reykjavik. Também não será igual a gama sensorial de uma pessoa que se alimentou sempre em sua localidade à de um viajante. Entram em jogo a física, a química, a tolerância ao novo e até a emoção que nos faz salivar tanto quanto chorar.A grande escritora, diplomata e fundadora do Conservatório da Cultura Gastronômica Mexicana, Gloria López, afirma que o que gostamos de comer os mexicanos tem a ver com a natureza e com o espaço geográfico que ocupamos. “Nosso território se situa em uma zona tropical, outra semi-desértica e altiplano. Isso define nossos gostos. Nas zonas tropicais existem sabores acentuados e picantes. Basta ver o norte da África, a Ásia ou o sudeste asiático. Nessas faixas tropicais se dão os pimentões e as pimentas: especiarias que acentuam o sabor da grande maioria de suas comidas”.Na minha opinião, os sabores também são construções culturais. E é que os sentidos são moldados pela cultura. O que é “feio”, “bom”, “burro” para alguém, em outro lugar não é. Os maias, por exemplo, consideravam belo ter implantes dentários de pedras semipreciosas. No tema culinário, acontece o mesmo. Para muitos estrangeiros, parece temível que tostemos chapulines e os comamos em saquinhos, polvilhados com chile e sal. Para mim, são pipocas para ver televisão. E não nego: o que gostamos de comer os mexicanos é peculiar. Melhor dizendo, original, divergente, único.Sem dúvida, o que mais define o gosto dos mexicanos é a comida temperada e picante. “São substanciais na nossa forma de comer. Outro sabor são os agridoce”, afirma Gloria López. Eu acrescentaria à soma o ácido. Mas o tema dos sabores também é físico. Quimicamente, o ser humano gosta de açúcar e carboidratos porque lhe dão forças, porque sua presença inibe as bactérias. Os sabores amargos, por sua vez, geram maior repulsa porque sua composição nos lembra ao que está estragado. Se por alguma razão fizéssemos um #limãochallenge com um bebê de um ano, as caretas de suas primeiras gotas de cítrico terminariam no TikTok da humanidade. A explicação bioquímica se chama palatabilidade. O fenômeno tem a ver com o corpo e com como os sentidos interpretam um alimento de acordo com suas memórias ancestrais de sobrevivência. Se algo lhe agrada, terá a ver com quanta satisfação nutricional oferece ao organismo. Sendo honestos –e pensando em fermentados como o pulque ou em sabores amargos e concentrados como o achiote– a palatabilidade não é tudo. A forma como os mexicanos nos apropriamos da biodiversidade e do entorno (a.k.a. a cultura) delineou o que nos agrada. No território havia chiles e tomates. Havia pedra, havia fogo. Colocamos tudo no molcajete e fizemos salsas. A essa apropriação, acrescentamos criatividade, percepção e o que íamos aprendendo no caminho: prova e erro. Filhos que interpretaram. Pais que ensinaram.No México gostamos do doce. Gostamos do doce com picante. Gostamos do doce com picante, com ácido. Se não, lembrem-se de quantos anos tinham quando provaram seu primeiro pirulito de tamarindo picante ou um raspadinha de groselha com limão de carrinho. Talvez não passássemos dos oito anos quando o recreio tinha gosto de Cazuelitas da cooperativa, de Cazares com Miguelito –essa mistura de açúcar e chilito que nos faz a barriga ficar apertada, mas que faz dançar as papilas só de pensar nela–. Desde pequenos treinamos nosso paladar para receber comida com serpentinas e confetes. Transformamos nossa boca em uma festa. A comida fervida nos parece tão triste quanto a morte. E embora os sabores mudem com cada região –com cada lar–, nenhuma se salva de uma forte corrente estimulante. Talvez, quanto mais ao sul, mais complexidade (doce, salgado, amargo, agridoce). Mas no norte os sabores são concentrados: o muito picante e a fumaça são peças que tornam interessante o exercício gustativo.A crema e o queijo nos servem para amainar os calores do chile. A alface para dar frescor àquilo que nos queima a boca. O limão nos “corta a gordura”, mas não como pensam aqueles que desejariam transformar as garnachas em salada com gotas de suco. O limão equilibra a pesadez da gordura, reduz ligeiramente o picante. E bem, se pensarem, que antojito se salva da fritura, da especiaria, do calor? Daí que o limão harmonize em tudo o que é mexicano, seja ou não bem visto. Octavio Paz dizia que, “Velho ou adolescente, crioulo ou mestiço, general, operário ou licenciado, o mexicano aparece como um ser que se encerra e se preserva: máscara o rosto, máscara o sorriso”. E é que não há mexicano que se salve das máscaras. Quem nos culpa de que o limão, o chile, ou as camadas de açúcar e canela cubram tudo? Deixar de fazê-lo, é provavelmente deixar de ser mexicano. Se você ficou com vontade de fazer o gosto dançar, compartilho esta receita que adoro: Paletas de tamarindo.