O que se come na Amazônia?
Por
Shadia Asencio - 2022-08-15T13:28:54Z
Os mosquitos percebem meu sangue fresco. É a novidade e não seu sabor que me torna uma iguaria para eles. Prendo um na minha bochecha enquanto Casia, uma mulher indígena da tribo uitoto da Amazônia, me guia selva adentro. Tem chovido muito nos últimos dias, por isso o ar no quilômetro onze de Letícia, Colômbia, é quente e úmido. O terreno é lamacento e cheio de vegetação, como era de se esperar. Após cerca de vinte minutos, chegamos a um edifício feito de palha e madeira: a maloca da família de Casia. A maloca se ergue sob quatro pilares que representam o cosmos e o devir da criação, segundo me conta o taita Walter, esposo de Casia. Este é um lugar sagrado onde as comunidades se reúnem para participar de rituais, tomar decisões importantes e comer. A dela é quadrada e abriga algumas camas, fogões e o mambeadero, onde elabora e compartilha mambé junto a outras medicinas ancestrais, como o yagé e o rapé. Ao lado do imóvel está a chagra, um sistema agrícola indígena em forma de espiral que remonta à milpa mesoamericana, às terras circulares que cruzam os Andes.O trabalho não espera e eu não vim para turistar, mas para cozinhar, curar e aprender os saberes locais junto às mulheres. Claudia já desfolha as folhas da palmeira com as quais tecerá algumas cestas para carregar alimentos e objetos. Meche está com os preparativos do almoço. Como todos os dias, comerão (comeremos) casabe: cultura e prova comestível de sobrevivência, fruto da mandioca brava.Não é de se surpreender que, se a flora e a fauna da Amazônia impressionam por seu tamanho, escultura e exotismo, aquilo que termina no fogão também o faça. Talvez o mais importante da gastronomia amazônica seja, além da técnica, os usos e costumes sobre seu entorno, o conhecimento que existe da medicina em cada ingrediente e a estreita relação entre a natureza, a alimentação e a cultura. Uma consciência baseada na sustentabilidade evita um desperdício fácil diante da abundância: existe um respeito pelos calendários ecológicos, por plantar aquilo que os alimenta a eles, aos peixes, aos animais. Esse habitat que enche os pratos a rebentar é reconhecido como um presente da Pachamama, a Mãe Terra. Por isso a importância dos xamãs. É preciso pedir permissão aos guardiões da selva, fazer o ritual respectivo, acessar coisas do espírito para que a harmonia e o equilíbrio se preservem na selva.A despensa amazônicaDesse território que faz fronteira com o Brasil e o Peru sobressaem as frutas de cores brilhantes e nomes rítmicos (aguajé, camu camu, copoazú, arazá), os tubérculos e as raízes de sabores doces, ácidos e picantes, os peixes de água doce e até vermes e larvas como o mojojoy, do qual se extrai uma “manteiga” com a qual se preparam caldos ou simplesmente se fritam. Eu experimentei misturado com cacau, dias depois em Bogotá, no restaurante Leo da chef Leonor Espinosa, recentemente nomeada Best Female Chef pela lista dos World’s 50 Best Restaurants. Em seu menu, ela exibe os frutos de seu trabalho conservacionista nas comunidades de diferentes regiões da Colômbia. Cada prato é uma viagem que conta histórias sobre ingredientes e técnicas, mas também sobre pessoas com nome e sobrenome.No caso dos insumos da despensa amazônica, tudo emerge da terra, cresce sobre as cascas ou mora no alto. É comum encontrar guisados com cajá, cúrcuma, gengibre e a raiz de açaí. Do rio, são pescadas delícias como o dourado, a cachama, o tucunaré e até a piranha, que são preparadas fritas, empanadas ou cobertas por algum molho. Os locais e os chefs adoram a carne do pirarucu, um dos peixes de água doce mais grandes que existem, no entanto, os indígenas evitam os peixes e animais grandes porque “são os donos do rio e da selva”. Em torno da coca (elemento masculino) e da mandioca (elemento feminino) se faz comunidade na maloca. Os relatos do dia, os acontecimentos da tribo são contados ao redor do gobeje – um pilão longo com alças em que se macera ou se rala a mandioca para fazer farinha. “Se você sabe preparar casabe, já pode se casar”, me diz Casia, enquanto as mulheres aprovam com um sorriso. Eu melhor anoto cada uma das instruções. É melhor. Meche, prima de Wilson, me mostra como usar o gobeje para macerar a mandioca que deixou de molho por três dias e resguarda um delicioso aroma selvagem. Mas é até eu tentar roubar um pouco para prová-la que descubro que é tóxica pelas quantidades que ainda possui de cianeto. “Não, ainda não está pronta”, me diz assustada. Após quase uma hora amassando com aquele grande bloco de madeira, o resultado é uma pasta suave que é levada ao tipití, uma placa alongada feita de palha que se torce para extrair o líquido venenoso. As mulheres me pedem ajuda para que eu seja quem insira a alça de cima em uma viga alta. Uma vez alcançada a difícil façanha, elas inserem um tubo na alça de baixo para girá-lo até espremer a farinha. Casia, com sua sabedoria e experiência, nos indica quando baixar o tipití. Depois, o tiramos para secar ao sol para que o avô Sol seque a farinha completamente. Por último, só resta peneirá-la sobre um cernidor gigante. Da mandioca se processa a fariña, presente em nossos casabes e em uma grande quantidade das preparações locais; do líquido que foi espremido se cria uma redução à qual se adiciona pimenta de gosto picante e fermentado, conhecida como molho de tucupí. Para fazer os casabes, nós colocamos a farinha peneirada sobre o budare de pedra de cerca de 80 centímetros de diâmetro, que dará aquela forma característica. Deixamos cozinhar sob o calor do fogão por aproximadamente vinte minutos até que o pão pareça cozido e a lenha tenha impresso seu esplendor no aroma e sabor. Depois de três horas de preparação, pego um pedaço: é a vitória.O casabe é apenas uma das múltiplas receitas que existem. Cada tribo despliega sua criatividade culinária com o objetivo de eliminar a toxicidade, conferindo formas, sabores e texturas particulares. Por exemplo, um dia antes na reserva Hábitat Sur, assisti a uma aula de cozinha amazônica junto a Lucy, da tribo tikuna. Além de elaborar peixe frito em molho de coco com cúrcuma, fizemos um casabe pequeno que não foi fermentado, mas lavado. O resultado foi um pão de consistência gluosa que lembra os mochis japoneses. Meche, Casia, Claudia e eu compartilhamos o almoço. Elas comem um caldo de peixe engrossado com fariña e eu, como sou a convidada, uma salada de tomates com cebola roxa, conservada com cocona de gosto cítrico e um peixe assado. E é que na cozinha amazônica quase tudo é assado ou frito e se come na hora, mas caso seja necessário conservar carnes e peixes recorre-se ao moquiado, ou moquia’o como dizem eles. A técnica consiste em colocar um fogão com diferentes tipos de lenha (que conferirã diferentes sabores à carne ou peixe) e depois pendurar a proteína a alguns centímetros recoberta em samambaias e outras folhas, de tal forma que o alimento não toque o fogo direto e se prepare com a fumaça e o tempo.O moquia’o eu pude provar também no menu degustação do restaurante Leo. A interpretação da chef é um pequeno pedaço de carne defumada disposto sobre um diminuto forno de pedra. A carne é decorada com samambaias de batata que lhe dão sabor e apresentação a um prato que, por si só, se torna inesquecível. Seu menu degustação é um percurso de arte, técnica, amor pelo ancestral e sabores que gritam “novidade”.Minha experiência com Meche, Claudia e Casia na Amazônia não fica atrás. Enquanto fazemos digestão e sigo atacando pedaços do casabe, a conversa se torna efervescente. Sou mais ouvinte do que participante, mas me divirto junto a elas. Dou muitas risadas, sinto que estou voando. Não posso deixar de agradecer a relevância deste dia em meu caminhar. Saio pensando que as mulheres amazônicas se parecem com sua comida: são igualmente vibrantes, possuem uma energia que alegra o corpo. Talvez esse seja outro dos frutos de viver neste paraíso, talvez seja outro dos presentes da Pachamama.Picante como a pimentaAutora: Anastasia Candre, poeta do Povo Okaina-Uitoto, La Chorrera.Saboroso e picante Seu aroma delicioso Assim é o coração da mulher uitota Furiosa e seus lábios ardentes Mulher uitota.Seu corpo odorífero Como o perfume da flor da pimenta Seu voz forte e picante Sozinha se apazigua a ira ardente Seu doce coração E começa a rir ji, ji, ji.A pimenta, coração da mulher A pimenta, a força feminina A pimenta, planta medicinal da mulher uitota É o verdadeiro ensinamento e conhecimento A chama que não se apaga Em seu doce lar.