O reconhecimento que faltava ao arroz mexicano
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Shadia Asencio - 2022-02-10T14:02:02Z
Não é o que abre o apetite nem a cereja do bolo. Justo no meio da refeição chega o passo indispensável das refeições corridas: um prato de arroz vermelho coroado por um ovo ou algumas bananas fritas. Sua simplicidade pode passar despercebida, mas sua elaboração é sinônimo de perícia culinária. O arroz é história, é resiliência, é abundância. Confúcio o via como pedra angular, uma paráfrase de completude: “Uma cozinha sem arroz é como uma bela mulher que lhe falta um olho”, citava. Quase sempre se presta culto a outros carboidratos – o milho ou o trigo – mas o arroz é o par dos ensopados nacionais. Que outro carboidrato poderia acompanhar tão dignamente o rei da mesa, o mole? Que outra sobremesa precisa mais do que canela, açúcar e leite para aquecer o coração? O que faz de qualquer pedacinho de carne o menu mais rendidor?Um arroz ovalado, perfeitamente separado, fofo, suficientemente firme é o desejo almejado de novatos e profissionais. As avós nos revelaram seus truques – fritá-lo, enxaguá-lo, deixá-lo de molho – mas talvez o mais importante e do qual menos se fala tem a ver com a qualidade do grão. O que chegou ao México na Conquista de além-mar logo fez desta terra sua própria casa. Fez isso conspicuamente em Morelos. Desde 1836, esse arroz se apoderou do gentílico daquele estado até se posicionar como o melhor da República. Trazer isso à tona não é casualidade. Há alguns dias, estive presente em Acapulco, na entrega de reconhecimentos da Guia México Gastronômico de Culinária Mexicana aos 250 melhores restaurantes e na terceira edição de Oficios Gastronômicos. Dentro das palestras e apresentações, o célebre chef e pesquisador Ricardo Muñoz Zurita expôs sua profunda admiração e respeito pelo arroz de Morelos, que há alguns anos foi reconhecido como marca Denominação de Origem pela Secretaria de Agricultura e que, segundo relatou, ainda não contava com a certificação necessária para ser reconhecido perante organismos internacionais. Com o ânimo que o caracteriza, Ricardo instou os participantes a se unirem à sua causa: conseguir os $200,000 pesos que eram necessários para a missão.De onde vem a magia do Arroz de Morelos?O culto mundial que desperta este ingrediente vem de sua adaptabilidade. Após ter chegado ao território mexicano, o arroz cresceu bem em Morelos graças aos seus solos, à sua altitude, à sua pluviometria. Foi sobre esta terra que adquiriu características únicas: “O arroz produzido em Morelos é grosso e longo. Uma característica é que no centro tem o que chamamos de barriga branca, que é o amido. O que faz esse tipo de arroz durante o cozimento é que absorve muito bem a água e isso faz com que fique fofo”, assegura Eduardo Morales, proprietário e diretor do Molino de Arroz de Puente de Ixtla, Morelos.E, claro, um título nobiliário como a Denominação de Origem não cai do céu. O arroz de Morelos conseguiu adquirir a marca porque a variedade ocorre unicamente nesta região geográfica do país, muito concretamente em vinte e dois municípios desse estado.Em uma entrevista com Ricardo Muñoz Zurita, o fundador dos restaurantes Azul me falou do que é especial no grão. Sua magia e qualidade estão no tratamento artesanal que se dá em cada parte do processo. E é que as mãos do homem estão intimamente envolvidas nos diversos momentos de produção: estão no cultivo sobre imensas pradarias cobertas por água, no transplante um a um, na colheita que pode ser feita com ou sem bote e na secagem ao sol sobre grandes chapas. No final do processo, em Puente de Ixtla é onde chega a maior parte do grão para ser submetido à secagem e descascamento.A distinção não está de mais. Além de salvaguardar o arroz que, segundo me contou Ricardo Muñoz Zurita, ganhou como o melhor arroz do mundo na Feira Mundial de 1900, essa certificação beneficiará principalmente os pequenos produtores: “Os cultivadores deste arroz, ao não terem a denominação de origem, não podem vender o arroz pelo preço que deveriam. Deixou-se de cultivar algo em torno de 15 mil hectares de arroz, pois houve uma terrível perda nas terras de cultivo que agora estão sendo utilizadas para cultivar outra coisa. Há o perigo de utilizá-las para outros produtos e então, provocar a desaparecimento de um arroz tão importante”, assegura.Para Eduardo Morales, além de poder estabelecer preços mais justos, a certificação daria ordem à comercialização. O tema é que o arroz do estado de Morelos é vendido a granel e em algumas centrais de abastecimento e mercados é misturado com grãos de menor qualidade a fim de obter mais lucro. Ao receber a distinção também existiria a obrigação de cumprir uma série de regulações voltadas a comprovar a pureza do arroz, sua origem nativa, a conservação da tradição em seu cultivo e a examinação organoléptica que verifique sua qualidade. Um ganha-ganha para agricultores, consumidores e nossa cultura gastronômica.O arroz na cozinha mexicanaEmbora outros arrozes funcionem também, o arroz Morelos se encaixa perfeitamente em nossos pratos. “Para os termos da cozinha mexicana, não se quebra nem se empapa como os outros arrozes. Isso não quer dizer que os outros não sejam bons, o que acontece é que têm características ideais para outro tipo de comida”, afirma o chef Ricardo. E é que não precisou ser endêmico para que o arroz seja tão mexicano quanto a bandeira. Prova disso é o vermelho com seus pedacinhos de cenoura, o branco com seus ervilhas e o verde, com os sabores do chile poblano. Ricardo Muñoz Zurita também fala de outros pratos indispensáveis como o arroz à tumbada, o arroz com frango ou com frutos do mar. Ele até me fala de um arroz no sul do país tingido com caldo de feijão que o torna negro.O arroz Morelos é um orgulho nacional. Seu cuidado e consumo é cultura, é economia e até justiça social. Talvez por isso, há alguns dias em Acapulco, cozinheiros de todo o México e meios gastronômicos nos unimos à proposta que começou Muñoz Zurita porque promete dar valor ao que as mãos camponesas produzem e a uma das tantas bênçãos que crescem sob a terra do Quinto Sol.