De Kiwilimón para você

Por que a cozinha mexicana está de luto

Por Shadia Asencio - 2020-12-11T13:38:48Z
A terça-feira o México perdeu algo: um fogão insubstituível se apagou para sempre. Yuri de Gortari, um dos grandes pesquisadores e divulgadores da gastronomia mexicana, deixou o plano terrenal. Alguns tiveram a sorte de chamá-lo de mestre. Eu não tive essa sorte. A cada ano pensava que agora sim faria o Diplomado de Cultura e Gastronomia Mexicanas e isso nunca aconteceu. Dele me resta ao menos a lembrança de sua voz pausada e seus comentários agudos quando pude entrevistá-lo. Yuri de Gortari foi um personagem letrado da cultura mexicana que desembainhou a espada pela cozinha que antes envergonhava muitos, antes da declaração da UNESCO e do boom midiático: antes dos World’s 50 Best Restaurants, dos Enrique Olvera, dos Jorge Vallejo. A ele coube confrontar personagens que chamaram a cozinha mexicana de ‘pouca coisa’ e aqueles que se referiam a um taco como um gesto culinário vulgar. A Yuri apaixonaram as minúcias do passo a passo, os ingredientes endêmicos, as personalidades que guardavam o saber culinário, as receitas que se transmitem como um DNA sagrado. Sob o grito de guerra #hagamospaís, ele e seu parceiro Edmundo Escamilla, recrutaram em suas fileiras alunos, donas de casa e cozinheiros que, como eles, tinham a convicção de salvar a cozinha mexicana do desuso, do ‘mexican curious’. Na instituição que fundaram, a Escola de Gastronomia Mexicana (ESGAMEX), ensinaram sobre aquilo que precisava ser colocado sob uma grande lupa na cozinha nacional: desmembraram suas técnicas, suas regiões e preparações, seus períodos históricos. Claudio Poblete, jornalista, diretor e fundador da Culinaria Mexicana, aponta que “Yuri e Edmundo, ao fundar ESGAMEX, colocaram a primeira pedra nos planos de estudos formais da cozinha mexicana”. O que é mais transcendente do que isso? Claudio comenta ainda que a melhor forma de preservar seu legado seria que “se institua a cátedra Yuri de Gortari em todas as universidades gastronômicas do México e que haja pelo menos um ano de aulas de cozinha mexicana com seu método de ensino”. Há quem na terça-feira tenha perdido uma fonte de sabores entrañáveis. Seu amigo Alejandro Cabral afirma que ao lado de Yuri não só provou a melhor cochinita de sua vida, mas teve um instante de revelação: “Ele fez as tortillas e depois colocou um pouco de banha. As tortillas estavam empilhadas para manter seu calor e assim a banha ia derretendo. As comi com feijões refritos – alguns que ele fazia com banha até que secavam –. O sabor dos feijões combinados com o milho e a banha me fez chorar”. A gente que conheceu Yuri afirma que ninguém defendia a cozinha mexicana das muletillas e das modas passageiras como ele. Falam de sua coerência na forma de olhar, dizer e fazer cozinha, sempre em função de preservar as tradições. Suas ideias firmes lhe renderam partidários e detratores. “Yuri e Edmundo eram fiéis aos seus princípios e não comprometiam sua visão da cozinha nacional diante de nenhuma visão comercial”, comenta Claudio Poblete.Desde terça-feira, os que fizeram aulas com ele e os que não farão lembrarão de Yuri por seus programas interessantíssimos no Canal Once, por seu saber em livros como El maíz de boca en boca, Recuerdos de chocolate e Guisos y golosos del barroco, por ser o grande estudioso da gastronomia mexicana e por dignificar o que é nosso. Lembrar-nos-emos dele porque quando éramos livres e saíamos de viagem, havia alguém que já sabia que o México não vivia apenas de nachos e chimichangas. Divulgadores como ele nos fazem levar com orgulho a camiseta, o avental e o huipil.Fotos: Bertha Herrera