Receituário para a memória
Por
Shadia Asencio - 2020-12-04T11:24:10Z
Um livro de receitas deveria ter respingos de fritura, colheradas de caldo de tomate, manchas de farinha. O que edita Zahara Gómez Lucini não convida a fazer isso. Ao contrário, dá vontade de colocar o exemplar em uma vitrine, em um relicário.Antes de folhear ‘Receituário para a memória’ não sabia que as receitas, assim como os cobertores e os abaixo-assinados, têm a capacidade de carregar nas costas uma protesto. Assim que cheguei à primeira receita, entendi do que se tratava tudo: “O bife ranchero para Ernesto, 5 de janeiro de 2011”. A receita era simples, não tinha quantidades. Em vez disso, havia uma infinidade de silêncios suspensos entre os passos da preparação. Este é um livro de receitas tanto quanto é uma caixa preta com lembranças arrumadas minuciosamente. E qual a conexão com o passado mais direta do que a comida favorita de quem já não está? O que está é a mesa posta e estão os pratos que já não serão comidos pelos desaparecidos de El Fuerte, ao norte de Sinaloa. Suas coautoras, as Rastreadoras do Fuerte, são as mães, esposas, avós, irmãs que os lembram em cada receita e que com pás ainda continuam a procurá-los.No livro há pouco mais de 25 pratos. Há fotos –magníficas– dos ensopados com claros e escuros e luzes que emolduram a fumaça nos pratos. Há preparações que dão água na boca. Na verdade, o que comove até os ossos é o que falta. Não há nostalgia maior do que umas gorditas sem feijão, uns tacos sem molho, um prato quente que aguarda ser comido por alguém que já não está.Para a autora, nos gestos cotidianos pode-se ser subversivo. “Desde seu fogão você pode prestar uma homenagem”, conta Zahara. “Você pode criar uma rede que apoie. O espaço é a comida, o espaço em que você a compartilha permite falar sobre isso em família. Por que há desaparecidos? Por que isso acontece? Fazer memória e daí agir, fazer com que isso penetre e as coisas se movam”.Há algo muito íntimo no ‘Receituário para a Memória’. As coautoras compartilham com ingredientes uma pequena biografia sapida de seu familiar desaparecido. O prato fica como rictus, como símbolo daqueles –seus tesouros, como as Rastreadoras do Fuerte chamam quem esperam descobrir em fossas clandestinas– que algum dia estiveram vivos e que ansiavam, como todos, por um sabor feito em casa.Não é necessário gritar para que a dor e a reclamação tenham voz nos assados que se tatuam na chapa, no borbulhar de um ensopado de longa cocção, no estalar do óleo em uma frigideira. Mas a memória aqui também é luta. O derrotismo é morte. “Elas são muito mais do que vítimas, são combatentes tremendas”, aponta Zahara.Por isso este livro é mais de vida do que de morte. É homenagem, é um altar com aromas e migalhas que ficam sobre a toalha. É memória que convida à ação através de um refogado, de uma fritura profunda. É preciso comprá-lo porque, além de ser uma obra fabulosa, cinquenta por cento dos lucros vão para as mulheres dos familiares desaparecidos. É preciso cozinhar com ele; sujá-lo com colheradas e descuidos de caldo de tomate: cozinhar algo de suas receitas será como reunir os desaparecidos na cotidianidade, conectá-los à energia esperançosa de uma mesa posta.