De Kiwilimón para você

Um país, 32 formas de comer enchiladas

Por Shadia Asencio - 2022-05-27T12:48:50Z
Umas tortillas fritas, suficientemente molhadas, expandidas em sabor pelo poder que a gordura e o molho conferem. É curioso que se chamem exatamente assim, “enchiladas”, porque aos mexicanos às vezes não nos queimam. Chegam até nós deitadas, agazapadas. Se tivermos sorte, vemos suas bordas porque geralmente estão cobertas com ingredientes que dão cor ao prato e suavizam a ardência. As enchiladas são uma categoria completa, um arquivo de receitas simples, humildes e amadas. Qual é a prova? Cada região tem uma seção especial onde estão tatuadas as suas. A matemática nos falha nas combinações: existem tantas delas quanto recheios, quanto molhos, quanto construções sobre o prato. Algumas são de ar, outras têm o recheio por fora, algumas são servidas secas, outras são feitas no forno para gratinar e cortar como torta. Ácidas, lúcidas, adocicadas ou áridas, as enchiladas enchem de vapores com aroma de fritura as lanchonetes, os quiosques de rua e os restaurantes com talheres de prata. Talvez não seja tão conhecido. Este prato não é conventual, mas tem uma origem pré-hispânica. Estavam presentes nas mesas de Moctezuma e de Cuitláhuac. Conhece-se pouco da receita original, mas segundo o pesquisador da faculdade de turismo e gastronomia da Universidade Anáhuac México, Alberto Peralta de Legarreta, a tortilla mal era cozida no comal, era molhada diretamente em um molho. Mesmo a massa podia ter pedaços de pimenta. “Estão documentadas desde os princípios da invasão europeia por Fray Bernardino de Sahagún, que fala sobre tortillas enchiladas, embora não as chame de fato ‘enchiladas’”, me conta.Com o mestizaje chegou o óleo e a banha, e junto a esse agente graxo suíno, uma versão com mais sabor das enchiladas. Os caldos e as tortillas molhadas logo se tornaram um alimento de rua por excelência, que com o tempo seduziu os sentidos da nobreza. “É um dos primeiros antojitos como os conhecemos hoje nas ruas”. Naquela época a banha podia ser temperada com pimenta ou não, e as enchiladas eram servidas com um pouco de queijo envelhecido. Às vezes eram recheadas com algum tipo de chorizo chamado morcón, ou simplesmente eram, como se conhece, de ar. Além das ruas, as enchiladas começaram a ser consumidas em uma espécie de fondas ou restaurantes chineses do século XIX, nos quais não se servia comida do Oriente, mas sim mexicana. “É provável que eles tenham começado a comercializá-las imitando as de rua, mas melhorando os ingredientes e as formas de cozimento”, aponta Peralta.No século XX, e com a cozinha francesa marcando as modas e tendências das gastronomias do mundo, as enchiladas não ficaram inertes. Daí que alguns queijos europeus e temperos como o creme tenham sido incorporados às receitas. O resultado foram as enchiladas suíças ¬¬que, embora não sejam picantes, sim picam para continuar comendo até deixar o refratário limpo. “As enchiladas suíças tinham uma temperagem que não podia ser copiada nas ruas, ou seja, tinham um queijo melhor, e que estava derretido, e deixaram de ser secas, e foram colocadas dentro de um prato fundo”.Atualmente, os estados preservam sua tradição culinária com variantes que diferem de outras enchiladas em relação aos molhos, técnicas, recheios e sua forma de disposição. Mesmo em alguns estados não são prato principal, mas sim a guarnição de um platão que exibe a riqueza culinária local na forma de uma sinopse, como as enchiladas tampiqueñas.O certo é que há elementos insubstituíveis que as separam do campo semântico dos tacos. Assim determinam as leis divinas da gastronomia nacional: a tortilla de milho ou de farinha deve estar dobrada ao meio ou enrolada, e passada em molho, antes ou depois de sua fritura, assado ou cozimento. Depois podem ser servidas simplesmente adobadas ou completadas por copiosos conchas de molho de toda gama cromática. “A temperagem de creme, queijo e cebola, que acreditamos ser ancestral, não aparece nos receituários do século XIX. Isso quer dizer que muito provavelmente seja das primeiras décadas do século XX”, completa Peralta.Cada estado da República tem suas enchiladas e todas asseguram serem melhores que as outras. Cada uma é um diálogo entre saberes, ingredientes e identidade. Por exemplo, as de Sonora são uma ode à comida XXL: são feitas com tortillas de grande dimensão e espessura que vão montadas sobre uma cama de alface, queijo e cebola ralada. Em Sinaloa estão as de solo, que são esfregadas com molho de pimenta, cominho e orégano e são recheadas com chorizo. No Veracruz são cobertas com feijão e recheadas com ovo, dando lugar a umas enfrijoladas, enquanto em outras regiões da entidade são preparadas com sementes de tepejilote. As colimenses levam um mole doce e são recheadas com porco. As potosinas são um clássico para o amante da enchilada: a massa é colorida com pimenta ancho e são recheadas cruas para posteriormente serem fritas como quesadillas.  No Oaxaca são cobertas com mole, dando lugar a outra acepção tremendamente expandida, as enmoladas. Em Pachuca são recheadas com queijo e frango e o molho é um adobo feito à base de pimenta poblano. As mineras são molhadas no molho de guajillo antes de serem passadas por banha de porco. São recheadas com queijo envelhecido e servidas com um guisado de batatas e cenouras, assim como tiras em conserva. Parecidas, mas não iguais, as placeras de Michoacán são servidas fora dos portais. O molho além de guajillo leva pimenta ancho e as servem junto a pedaços de frango.No Guerrero chamam de enchiladas calentadas aquelas elaboradas com mole de pimenta ancho que são recheadas com chorizo; para conferir-lhes algo de frescura, são servidas sobre uma cama de alface e são coroadas com uma mistura de queijo, orégano e tiras. As chiapanecas são molhadas em leite, ovo e um molho de pimenta mulato e ancho. No Tabasco são recheadas com picadillo e não são fritas, mas sim untadas em mole. “A Cidade do México pode erguer o pescoço dizendo que lançou o protótipo do que hoje concebemos como enchiladas, que são as verdes ou vermelhas, servidas em molho abundante e a temperagem mais prestigiosa: creme, queijo fresco e cebola”, finaliza Alberto Peralta. À lista se acrescentam as criações de cada lanchonete, as tricolor em épocas patrióticas, as recheadas com a proteína da moda: pastor, birria, suadero. As vegetarianas, as veganas de flor de Jamaica, as daquele mole especial que só naquele povo se prepara.As receitas variam, mas cada uma é um relato escrito com ingredientes sobre nossa identidade. As enchiladas são o equilíbrio perfeito do que somos e temos sido: o povo da pimenta e do milho, dispostas em partes iguais.