Comida ao lixo: Os níveis do desperdício
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Kiwilimón - 2018-10-16T09:25:01.606772Z
Embora a possibilidade de um planeta apocalíptico, onde a comida seja um bem tão escasso que seja necessário lutar por ela, ainda soe como um tema de ficção científica, as perspectivas não são promissoras. Especialmente se considerarmos que quase um terço da comida que é produzida anualmente no mundo é desperdiçada. Os problemas de fome poderiam ser aliviados se simplesmente parássemos de jogar comida fora.
A alimentação é um dos problemas mais sérios que a humanidade enfrenta. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), quase mil milhões de pessoas no mundo sofrem de fome. Em um cenário como este, jogar comida fora parece quase um ato criminal, mas é exatamente isso que fazemos. A “perda e desperdício de alimentos” é um termo cunhado pela própria FAO que se refere à “diminuição da massa de alimentos para consumo humano em qualquer ponto da cadeia produtiva”. Em outras palavras: considera-se desperdício todos aqueles alimentos destinados ao aproveitamento humano que, em última instância, não são consumidos pela população.
Para dar uma ideia da magnitude da situação, a organização publicou o estudo Global Food Losses and Food Waste, o mais ambicioso de seu tipo até agora, cujo resultado mostra que 32% da comida produzida em 2009 (quase um terço de uma produção total de aproximadamente 4 000 milhões de toneladas) foi desperdiçada.
Cadena de desperdício
De acordo com o mesmo relatório, divulgado por The Institution of Mechanical Engineers, associação inglesa com presença em 140 países, o desperdício de comida se gera em cada um dos processos da cadeia de produção-distribuição-consumo. Isso inclui a coleta, armazenamento, embalagem, transporte, oferta em pontos de venda e comportamento final dos compradores. Entre os problemas destacados por este documento estão as políticas de distribuidores, atacadistas e varejistas, que privilegiam “a perfeição estética” de frutas e verduras (o que implica que muitos alimentos, amassados mas perfeitamente consumíveis, não cheguem às prateleiras).
Do outro lado da mesa, do ponto de vista do consumidor, acontece o mesmo: escolhemos frutas e vegetais bonitos, antes de comprar aqueles que apresentam alguma manchinha ou um leve golpe, o que gera enorme desperdício. A esta problemática, a FAO soma as práticas comerciais cuja oferta estimula as compras excessivas de alimentos (muitos acabam estragando nas geladeiras e despensas dos consumidores), a atribuição de datas de validade rigorosas (os compradores assumimos que não é seguro ingerir um alimento depois desse prazo, embora isso implique que alimentos em boas condições sejam desperdiçados) e uma cultura de consumo onde o desperdício é tão natural que nem sequer reparamos em suas consequências.
Mexico em perda
No caso do nosso país, a cada ano descartamos cerca de 37% dos alimentos que produzimos (10,4 milhões de toneladas por ano de um total aproximado de 28,1 milhões, percentual que supera a média internacional de 32%) e que seriam suficientes para alimentar anualmente 7,4 milhões de mexicanos. Isso conforme uma análise realizada pelo Grupo Técnico de Perdas e Desperdícios de Alimentos no México, publicada em 2013 pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedesol), que aponta que os alimentos mais desperdiçados são o leite de vaca e a goiaba: 57% da produção acaba no lixo. Seguem-se o mango, peixes e sardinhas, com 54% de desperdício; depois o abacate, a banana e o nopal, com 53%. Para Genaro Aguilar Gutiérrez, especialista do Instituto Politécnico Nacional (IPN) e encarregado desta pesquisa, “é desumano que se desperdicem tantas milhares de toneladas por ano, que serviriam para evitar a fome que padecem milhões de pessoas”.
Os consumidores contra-atacam
Para evitar o desperdício, a FAO recomenda aos governos, entre outras ações, gerar campanhas de educação e sensibilização dirigidas a cada um dos atores da cadeia alimentar e os consumidores; melhorar as infraestruturas de transporte, energia e instalações do mercado; além de promover o desenvolvimento e facilitar aos produtores o acesso a nova tecnologia. Outras ações implicam uma mudança no marco legal e nas políticas governamentais. Um exemplo bem-sucedido a nível mundial é a França, onde foi aprovada uma lei que estabelece que os supermercados com superfícies superiores a 400 metros quadrados não podem jogar fora produtos perecíveis. Em vez disso, devem doar a comida não apta para consumo humano a organizações de cuidado animal ou à produção de adubo.
Como consumidores, também temos a possibilidade de reverter a situação e contribuir para um melhor aproveitamento dos alimentos. Existem organizações e redes dedicadas a conscientizar as pessoas sobre seus hábitos de consumo e criar comunidade para lutar juntas por uma nutrição sem desperdício. Culinary Misfits, ThinkEatSave, Disco Sopa, Ugly Fruits (que busca convencer os consumidores a incorporar ao seu carrinho de compras todos aqueles “vegetais feios”). Por sua vez, Picnic, Casserole Club, Shareyourmeal, Cookisto, Foodsharing, são sites da internet que colocam em contato cozinheiros e compradores para compartilhar comida. Por exemplo, se em uma casa sobra comida, o usuário pode publicar seu anúncio com os assinantes da área e oferecer os alimentos a custo baixo.
Futuro possível
Existe uma tremenda oportunidade para recompor o rumo das ações destinadas a reverter o desperdício de alimentos. Os especialistas da The Institution of Mechanical Engineers o colocam assim de forma clara: se o total de alimento produzido anualmente no mundo soma cerca de 4 000 milhões de toneladas, e desse total é desperdiçado entre 30% e 50%, significa que estamos alimentando 7 000 milhões de pessoas com 2 800 milhões de toneladas de comida. Para alimentar 9 600 milhões de pessoas (a população estimada para 2050), bastaria com 4 000 milhões de toneladas de alimento, as mesmas que produzimos hoje… mas sem o desperdício. Embora seja impossível considerar uma cadeia de produção sem perdas, as medidas contra o desperdício de comida que tomarmos fortalecerão as possibilidades de um desenvolvimento alimentar global sustentável. Conscientizar a população e realizar ações contra a perda e o desperdício de alimentos pode mudar a maneira como concebemos a luta contra a fome e beneficiar milhões de pessoas.
Um país faminto
Para solucionar o problema da falta de alimento no mundo existem, basicamente, duas soluções. Por um lado, aumentar a produção ou otimizar o consumo dos que atualmente são produzidos. No início de agosto, Enrique Martínez e Martínez, Secretário de Agricultura, Pecuária, Desenvolvimento Rural, Pesca e Alimentação, declarou à imprensa que, diante das previsões da FAO — que estabelecem que para 2050 seremos 9 600 milhões de habitantes no planeta —: “teremos que produzir, pelo menos, 60% a mais de alimentos para satisfazer a demanda”. Essa afirmação veio acompanhada de planos de infraestrutura para aumentar a produção e as exportações, que incluem a tecnificação da irrigação, a dotação de tratores e implementos agrícolas e a implantação de um programa para a construção de barragens de captação de água, entre outros.
Por outro lado, o Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social (Coneval) publicou os resultados de uma pesquisa realizada com um milhão de beneficiários da Cruzada Nacional contra a Fome, estratégia governamental criada em 2013 que “pretende dar uma solução estrutural e permanente a um grave problema que existe no México: a fome”. Embora este programa tenha reduzido a carência de alimento de 100 a 42,5%, o próprio Coneval aponta que “devem ser encontrados mecanismos para lograr a redução da pobreza mais ampla que envolve 55 milhões de pessoas”.
Desperdício global
Segundo a FAO, a fruta é o alimento mais desperdiçado do mundo. A cada ano, são descartadas sem consumir 1 300 milhões de toneladas, o que equivale a 44% da produção. Outros alimentos de alto desperdício são os tubérculos (20%), os cereais (19%) e o leite (8% de desperdício mundial).
Planeta esgotado
De acordo com a organização Global Footprint Network (GFN), no dia 13 de agosto passado, o consumo dos mais de 7 000 milhões de pessoas que habitamos a Terra esgotou os recursos naturais que o planeta é capaz de produzir durante 2015. Ou seja, a partir desse momento todos os recursos que gastamos excedem a capacidade de produção terrestre. (A GFN estima que “a humanidade precisa atualmente de 1,6 planetas para sustentar seu modelo de consumo. E serão necessários dois planetas até 2030).
Danos colaterais
O desperdício de alimento não só representa perdas humanas e econômicas; também implica o uso inútil de água, terra, energia, material de embalagem, químicos, fertilizantes e pesticidas, além do combustível empregado para transportar a comida, entre muitos outros resíduos colaterais. Este desperdício é um risco para o ambiente devido ao aumento de metano e outros gases de efeito estufa causados pela putrefação dos alimentos.