Amar-nos através da comida, é realidade ou ficção?
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Shadia Asencio - 2023-01-06T13:13:21Z
É possível demonstrar amor através das decisões alimentares que tomamos? Na verdade, o amor, como a água, busca saída por qualquer fissura. A comida é apenas uma forma, assim como uma palavra, um passeio, uma decisão, um encontro. A uma pessoa amada diríamos que o amor se expressa através dos detalhes, das carícias. Assim também é o amor próprio. Mas o que é o amor por si mesmo e qual é a melhor forma de manifestá-lo, especificamente no tema alimentar? Alguns poderiam afirmar que é simplesmente satisfazendo os desejos do corpo. E claro, de vez em quando pode ser. Um carinho esporádico e consciente é sem dúvida uma demonstração de flexibilidade, de parar de nos autoexigir a cada momento. Mas é preciso saber diferenciar entre um capricho do ego e um anseio real: não se vive só de saladas assim como não se vive só de bolo. O amor começa na atenção. Você não pode amar o que não conhece. O corpo nos falará da fome, das necessidades fisiológicas do organismo. É preciso começar fazendo um pequeno escaneamento: “Estamos com falta de vitamina C!”, talvez nossas células pudessem nos expressar. E se realmente escutássemos os desejos profundos do corpo, o mais certo é que pediríamos uma sopinha de limão, espinafre ao creme, uma salada de cítricos e pimentões. Outra forma de prestar atenção ao corpo é conhecer o que nos cai bem, o que dá um soco em nossas vísceras, o que nos pesa. E não há melhor forma de se conhecer do que prestar atenção plena antes, durante e depois de comer. Poderíamos até manter um diário de alimentos para registrar como nos sentimos com tal ou qual preparação ou ingredientes. O amor se expressa com a comunicação. Neste caso, quando somos capazes de ouvir o corpo, ele se comunica através de sensações: está com fome ou sede? Sente dor no centro do peito, está estressado? Quando já estamos comendo, é preciso investigar como o organismo se sente com aquele alimento. Está inflamando meu ventre? Aumenta o calor e nos faz suar? E na sobremesa, seria importante revisar a digestão, o estado de energia que ficou após o menu escolhido. Foi reparador? Caiu como um balde de água? Nos deixou tristes?A atenção pode ir além do corpo em si. Pode nos levar a registrar as emoções que temos antes de sentar à mesa. Vale a pena perguntar como chegamos. Estou triste, cansado, eufórico? Como isso influenciará minhas decisões alimentares? A ansiedade talvez me leve a comer mais e a tristeza a comer menos. Posso tomar decisões acima dessas emoções? Se não se pode ou não se quer, em consciência, o ato de amor se representará em ser flexível consigo mesmo. Deixar de satanizar ingredientes ou preparações, e desfrutá-los com moderação e autocuidado.As sensações do corpo e as emoções não estão sozinhas. A mente nos lançará pensamentos, crenças ou julgamentos sobre certos alimentos que farão com que escolhamos um alimento em detrimento de outro. Mas é preciso estar ciente disso igualmente. Se desde pequenos nos ensinaram que “não há comida sem carne”, que “os vegetais são para as vacas”, seguramente pediremos algo desprovido de frescor e verdor. Se nossa forma de nos alegrar foi através da comida frita, o mais provável é que se for um dia nublado, escolhamos algo mergulhado em gordura. Aí estão as armadilhas dos pensamentos que nos pegam desprevenidos quando não nos autoexaminamos. Será que realmente ficarei mais feliz comendo algo frito? Minhas crenças sobre a comida são verdadeiras? A única resposta está no corpo. Revisar o antes, o durante e o depois da comida. E se após os desejos fica a ressaca da culpa, lembrar que a culpa é um dos inimigos do amor. A mentira sem dúvida é outro pior.Como o amor real é ativo e não passivo, após ouvir o próprio corpo + sensações + mente, teremos mais elementos para tomar melhores decisões. E claro, não esquecer que devemos ser observantes com o exterior para que nossas decisões não sejam a verdade de outra pessoa. Pode ser que a degustação da comida seja um tema social e coletivo, até mesmo cultural e agora até digital, no entanto, a alimentação é um ato individual, que expressa quem somos e quanto nos amamos. Ninguém pode obrigá-lo a comer algo que você não precisa, algo que você já não quer. Talvez quando éramos pequenos não podíamos tomar decisões sobre o que entraria em nosso templo. Agora é parte do caminho de quem quer viver em consciência e amor.A qualidade de nossas decisões está relacionada a quanto nos valorizamos e o que valorizamos. Se você é consciente, não há más decisões. Simplesmente, há atos de verdade, atos de escuta ou bem, atos de compaixão – onde cabe um bom pão doce – que devem se equilibrar com bons alimentos – frescos, não processados – para a preservação ótima do organismo. E sim, não esquecer que a preservação ótima do ser é o ato mais essencial do amor. O amor nos deixa sensações de bem-estar, e se refletirmos, o bem-estar é o mais próximo da felicidade. Que grande presente poder nos sentir satisfeitos e plenos ao terminar nosso prato; contentes e sem culpa; recarregados de energia. Revitalizados, se é de manhã ou à noite; relaxados e em paz, se falta pouco para dormir. Estados plenos de consciência e de conexão apenas por se manter “desperto” e atento enquanto se come. Como começar a nos ouvir? O amor pede atenção, ou pelo menos evitar distrações, por isso, queridas séries da Netflix: amamos vocês, assim como aos livros Prêmio Alfaguara, influenciadores do TikTok ou vídeo de como cozinhar frango de kiwilimón no Facebook. Na hora de comer, o melhor é desfrutar da harmonia, da atenção plena, de uma boa conversa, de uma boa energia que não estrague nossas decisões alimentares. Outras formas de amar-se com a comida é agradecer àquilo que temos à nossa frente, agradecer a quem colocou isso tão delicioso no prato, agradecer ao corpo por seu esforço em cuidar de nós e processar tudo gentilmente.É possível amar-se através da comida, assim como expressar amor a outras pessoas com ela: oferecer à nossa família pratos que, além de estarem vigorosamente temperados, cuidadosamente sazona-dos, estejam cheios de atenção ao detalhe, aos ingredientes, para que lhes deixem sensações de bem-estar.Despertar a sabedoria do corpo leva tempo. A energia que corre neste ano é a de recuperação e que melhor forma de aproveitá-la, do que recuperando nosso poder e nos tornando responsáveis pelo autocuidado, pelo amor que nos damos. 2023, aqui vamos nós.