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De Kiwilimón para você

A comida corrida, o tesouro invisível da gastronomia mexicana
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A comida corrida, o tesouro invisível da gastronomia mexicana

Por Shadia Asencio - 2021-05-20T17:09:43Z
Quando se fala de comida mexicana, os antojitos, zelosos, capturam a atenção. As barracas de rua se enchem diante de comensais famintos, críticos gastronômicos ávidos por uma nota e fotógrafos prontos para capturar as imagens que acabarão na Netflix. Não escapam os banquetes dos refeitórios familiares tradicionais, dos restaurantes de toalhas longas que aparecem nas listas gastronômicas do mundo. Junto a eles, à vista de todos, mas sob o sutil véu da invisibilidade, estão os locais que nos deixam sobre os aromas da verdadeira cozinha mexicana: os da comida corrida, os das fonditas.

Quase sempre, sob o nome próprio de uma mulher – Dona Mari, Dona Margarita, Dona... – as fonditas rotulam a autoria daquele ou daquela que, com um orçamento fixo, dão cor aos ingredientes da cesta básica. Por suposto, há exceções à regra, como Don Arturo, a fondita que me alimentou por quase sete anos enquanto trabalhava em Polanco. A comida corrida era diariamente oferecida por um homem, Don Rubén, cujos fios com creme e seu pudim de pão serviam para amenizar as jornadas de todos os publicitários que diariamente buscávamos uma dose do lar ao qual poucas vezes chegávamos. 

O planejamento nas fonditas é básico e, por isso, magistral: um pentálogo de paradas culinárias inamovíveis que enchem o estômago e a roupa com os humores das panelas. Embora a origem seja humilde, quase sempre se localizam nas periferias dos mercados, nas zonas populares, nas avenidas com fluxo proletário, majoritariamente afastadas do burburinho turístico.

Na comida corrida, sabe-se que você não irá a lugar algum até terminar o menu de pé a pá. “O termo corrida é um termo espanhol que usamos no México quando uma coisa vai atrás da outra; então, se uma pessoa fala de corrido é porque diz uma coisa e depois outra, e mais uma”, comenta o ensaísta e historiador gastronômico José N. Iturriaga. Uma vez que você se instala, a garçonete lhe servirá uma sopa e, em seguida, o arroz ou a massa. “No caso do prato principal, eles vão perguntar o que você quer porque quase sempre há opções”, assegura Iturriaga.

A estrutura é uma instituição culinária que mal mudou com os anos: por um preço que raramente ultrapassa cem pesos, da cozinha desfilará uma série de pratos destinados a saciar a fome atroz dos estudantes, do trabalhador cinestésico, do pequeno burguês ansioso. No centro, haverá também tortillas ou cestas de plástico com bolinho e molhos em panelinhas. E é que na comida corrida tudo está disposto para reproduzir uma cena familiar, que escapa da glória celebratória do sábado ou do domingo. 

“A comida corrida sempre vem com um copo de águas frescas que pode ser uma limonada ou uma água de jamaica, de tamarindo, de melancia, de melão, de alguma fruta da temporada”, comenta Iturriaga. 

Em termos culturais, como tudo o que se cozinha em território nacional, a comida corrida é fruto do mestizagem. “A primeira parte é quase sempre uma sopa de massa. As massas trazidas pelos espanhóis surgem na China algo assim como dois séculos antes da Conquista. Depois, a segunda parte é um arroz que também é de origem chinesa e que também foi trazido pelos espanhóis. Chamamos de “mexicano” porque tem uma cor vermelha do tomate com o qual é cozido. O mais clássico leva ervilhas e quadradinhos de cenoura.”

O prato principal é variável, quase sempre é um guisado e não propriamente um antojito. “Não estamos falando de pratos de muita elaboração, já que esses são para ocasiões mais festivas. Falamos de uma carninha de porco em molho verde com verdolagas, tinga de carne com a carne da peito de carne desfiada. Quando há peixe, nos darão algum filé de mojarra ou daqueles que você compra fininhos para que renda melhor”. Isso sim, quase sempre irá empanizado para que seja mais recheado.

Os que oferecem opções fora do menu quase sempre custarão alguns pesos a mais. Aí está o ovo ou a banana que decorarão em sabor e cor o arroz. E no prato principal, não falta a rainha da cozinha de fondita: a milanesa. “A milanesa deve seu nome a Milão, que hoje é o norte da Itália, mas que, no século XIX, era parte do Império Austro-Húngaro. De fato, as milanesas mais famosas do mundo estão em Viena, capital da Áustria”. 

O sobremesa irrevogável da comida corrida é o arroz doce que quase sempre é cozido com canela. “Toda a canela que se consome no mundo vem do Ceilão, uma ilha ao sul do Sri Lanka”, completa o licenciado Iturriaga. Mas não faltam as gelatinas, quase sempre de cores vivas – verdes, laranjas e vermelhas – os pudins com o pão que sobra de outros dias, o bolo de três leites para os dias especiais, como as sextas-feiras, em que a proprietária, se estiver de bom humor, agradará seus comensais. 

A cozinha das fonditas nos faz sentir em casa em pleno tumulto do dia. Da dona, do responsável, acabamos por nos tornarmos íntimos, conhecendo os temperamentos, acostumando-nos à experiência saborosa. “As fonditas resolvem, especialmente para quem tem que comer fora diariamente, seja você um oficinista ou estudante do estrato socioeconômico de classes médias baixas e de classes proletárias, e é que nelas comemos como em sua casa”. 

Há um tesouro invisível nas cidades ao qual devemos horas jornalísticas. Graças aos temperos de Dona Mari ou a Don Rubén ou à dona de nossa confiança, é que nutrimos nossos corações de uma a três da tarde. Seus guisados nos lembram que pertencemos a algo mais que a uma corporação, que somos seres humanos mesmo durante o horário de trabalho.