Flores de cempasúchil em copos de vidro. Dois pães dos mortos ao lado de restos de açúcar espalhados. Uma panelinha, a menor do armário, cheia de mole que já ganhou uma camada de nata. Papel picado desbotado pelas gotas de um copo de tequila que se derramou. No topo, a foto do parente falecido observando tudo: a abundância ou a escassez da oferenda, a falta do ossinho no pão. Essa cena se repete todo ano no altar dos mortos. Esta é uma cena de tradição mestiça.
Não sei se foi Coco, não sei se foi James Bond. Este costume metade pré-hispânico, metade espanhol, ressurgiu com força nos cantos das salas mexicanas. Frei Bernardino de Sahagún, na História geral das coisas da Nova Espanha, já relatava que os astecas eram dados a fazer festas aos mortos. O altar lembrava a viagem de quatro anos que o falecido deveria empreender, caminho para Mictlán, o reino dos mortos. Como em quase todas as religiões e crenças, não havia altar sem uma oferenda, e como em quase toda oferta, sempre havia algo para comer.
Segundo me conta o licenciado José N. Iturriaga, historiador e escritor, havia um ingrediente indispensável nos altares pré-hispânicos: os tamales envoltos em folhas de totomoxtle. Também havia água para ajudar a alma do morto a enfrentar o caminho cheio de perigos. Depois, com a evangelização, os costumes católicos como o rito aos santos e a fermentação do trigo foram se misturando com os costumes locais.
O altar é mestiçagem pura. Por exemplo, estão as flores endêmicas como os cempasúchiles, os feijões, o tequila –que, embora tenha denominação de origem, não existiria sem a destilação, originária da Ásia–. O mole é um prato barroco, resultado da troca com a África do Norte, Espanha, o sudeste asiático... O pão dos mortos é fruto do sincretismo do pão das almas que é feito em Segovia ou dos ossos de santo, uma sobremesa de massa de amêndoa espanhola cuja apresentação lembra os relicários.
Assim como a origem do altar é diversa, também o é a celebração: “O 1º de novembro, dia de Todos os Santos, foi um dia para celebrar os santos que não tinham data e foi instituído no século sétimo; o Dia dos Mortos foi estabelecido pelo Papa Bonifácio IV na Abadia de Cluny Odilón”, explica Iturriaga. Isso aconteceu no século X –claramente, muito antes da Conquista– com o objetivo de que os fiéis fizessem oração pelos mortos.
Para os que injuriam contra o Halloween assumindo que é uma falsificação da nossa festa, Iturriaga conta que a palavra vem de All hallow’s eve, que é outra forma de nomear “todos os santos”. A celebração data de épocas medievais e foram os irlandeses quem a trouxeram para a América. O que diz respeito aos Frankenstein e dráculas, isso sim já é presente dos Estados Unidos –e, bem, de Mary Shelly e Bram Stoker–.
A simbologia do altar é naturalmente mexicana. Uma oferenda que se respeite deve ter todos os seus componentes: água, terra, caveirinhas de açúcar, flores, alimentos, vela e copal para guiar o morto até o altar. Para Iturriaga também não deve faltar o alimento raiz que nos conecta com nossos ancestrais: o tamal. Os tamales são peças individuais que se preservam bem e aguentam bem a intempérie –lembramos que muitos altares estão em cemitérios– e longe de um simbolismo específico, provêm de “O grão mãe que molda uma cultura. O alimento mais icônico”.
Nossa crença é única: por um dia no ano temos de volta a casa aquele familiar que tanto amamos, aquele ser que admiramos muito e que sentimos falta. Esquecemos o medo que os fantasmas nos dão, em outros dias menos festivos do ano, para esperar que nosso ser amado atravesse o céu ou o mundo paralelo para comer, beber e fumar. Isso sim, não cometam o erro de esquecer os fósforos.
Para honrá-los, aqui compartilho a
seção onde colocamos toda essa comida que pode agradá-los.